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Avanços no Tratamento da Anemia Falciforme com a Terapia Genética CRISPR-Cas9

Estudo de fase I/II revela resultados promissores no aumento da expressão de hemoglobina fetal e melhora clínica em pacientes com anemia falciforme

Escrito por:Samara Alves

Revisado por: Guareide Carelli

A tecnologia de edição genética CRISPR-Cas9 tem se destacado como uma ferramenta na busca pela cura de várias doenças genéticas, entre elas a anemia falciforme. Esta condição, resultante de uma desordem que afeta as hemácias, as torna rígidas e com uma forma alongada, o que causa uma série de sintomas debilitantes e pode levar a complicações graves. Essas hemácias deformadas podem ficar presas nos vasos sanguíneos, resultando na obstrução do fluxo sanguíneo e na falta de oxigênio em várias partes do corpo. Os sintomas variam, mas geralmente incluem anemia crônica, dores intensas, danos progressivos a órgãos e risco aumentado de morte. A raiz do problema reside em uma mutação genética que afeta a produção da hemoglobina, a proteína responsável pelo transporte de oxigênio nas células vermelhas do sangue. Durante o desenvolvimento fetal, a hemoglobina consiste em duas subunidades, alfa (α) e gama (γ), formando a hemoglobina α2γ2. Após o nascimento, ocorre uma transição para a produção da subunidade beta (β) e repressão da unidade γ, gerando-se apenas a hemoglobina α2β2 que permanece ao longo da vida. Em pacientes com anemia falciforme, uma mutação em um gene chamado HBB, que codifica a formação da subunidade β da hemoglobina, leva a uma alteração na estrutura das células sanguíneas.

Atualmente, o transplante de medula óssea é a opção de tratamento mais eficaz, mas muitos pacientes não têm acesso a doadores compatíveis. No entanto, a terapia genética CRISPR-Cas9 traz esperanças para esses pacientes. Essa tecnologia de edição genética utiliza um processo natural, o fenômeno CRISPR, que as bactérias usam para incorporar material genético de vírus em seus próprios genomas. A CRISPR-Cas9 utiliza esse fenômeno como uma espécie de “tesoura molecular” para cortar sequências de DNA específicas com a enzima Cas9, desativando assim o gene-alvo. Em seguida, o DNA é reparado pela célula, muitas vezes com a adição de um novo segmento de DNA criado em laboratório ou com nucleotídeos adicionados pelas células. O resultado é a desativação permanente do gene onde a enzima Cas9 atuou. O tratamento da anemia falciforme com a CRISPR-Cas9 envolve a reativação da produção da hemoglobina fetal α2γ2, através da inativação de genes e proteínas responsáveis por reprimir essa produção. Para isso, é feito a coleta de células-tronco da medula óssea do paciente, e uma das abordagens consiste em inativar em laboratório o gene BCL11A que codifica a produção da proteína BCL11A, responsável por silenciar a hemoglobina fetal. Outra abordagem possível é a inativação em laboratório das posições dos promotores do gene HBG1 e HBG2, que são as posições genéticas onde a proteína BCL11A atuaria para silenciar a hemoglobina fetal. Em ambas as abordagens, a hemoglobina fetal γ pode voltar a ser produzida. Depois da edição genética, essas células são reimplantadas no paciente que passa a produzir a hemoglobina fetal e volta a possuir hemoglobina funcional.

Um estudo de fase I/II patrocinado pela Novartis e publicado na revista The New England Journal of Medicine, investigou essa abordagem em três participantes com anemia falciforme grave usando o produto de terapia celular experimental OTQ923. Esse produto foi desenvolvido a partir de células-tronco hematopoiéticas dos pacientes e, posteriormente, editadas ex vivo por meio da tecnologia CRISPR-Cas9, com o objetivo de interromper seletivamente os promotores dos genes HBG1 e HBG2. O estudo incluiu ensaios pré-clínicos e clínicos, e os pacientes receberam uma única infusão do produto OTQ923 após passarem por um procedimento de condicionamento mieloablativo. Os participantes foram acompanhados por um período que variou de 6 a 18 meses.

Os resultados do estudo revelaram melhorias notáveis nos níveis de hemoglobina total e hemoglobina fetal nos três participantes. A hemoglobina fetal, como porcentagem da hemoglobina total, variou de 19,0% a 26,8%, indicando uma expressão significativa da hemoglobina fetal. Além disso, essa hemoglobina fetal estava amplamente distribuída nas células vermelhas do sangue, com células F representando de 69,7% a 87,8% das hemácias. Como melhora clínica, houve redução na ocorrência de crises vaso-oclusivas, que são episódios de dor aguda comuns em pacientes com anemia falciforme. Embora todos os três participantes tenham experimentado pelo menos uma crise vaso-oclusiva após a infusão, a frequência desses episódios foi significativamente reduzida. Outro aspecto positivo foi a melhoria ou estabilidade das funções cardíacas, pulmonares e renais em dois dos participantes, observada 12 meses após a infusão do OTQ923. No entanto, o estudo também indicou a persistência ou piora da osteonecrose, o que pode estar relacionado à exposição ao agente mieloablativo bussulfano durante o procedimento de condicionamento. No que diz respeito ao perfil de segurança, os participantes relataram vários eventos adversos, mas todos foram atribuídos ao condicionamento mieloablativo com bussulfano ou à própria doença falciforme. Nenhum evento adverso foi diretamente associado ao OTQ923.

Embora tenha havido melhoria nos níveis hematológicos e na redução dos sintomas da doença, é importante destacar que todos os participantes ainda apresentavam uma forma leve emcontínua de hemólise. Isso sugere que os níveis de hemoglobina fetal nas hemácias ainda não foram suficientes para inibir completamente a polimerização da hemoglobina falciforme, indicando que a melhoria completa da doença não foi alcançada. Os autores do estudo identificaram diversas áreas que podem ser aprimoradas em estudos futuros. Isso inclui modificações no processo de fabricação do produto OTQ923, a exploração de outros genes promotores 

envolvidos na supressão de HGB1 e HGB2, e a investigação do uso de agentes mieloablativos menos tóxicos que o bussulfano. Embora a durabilidade da resposta a longo prazo e a segurança do produto geneticamente modificado ainda precisem ser avaliadas por mais tempo e em mais estudos, os dados obtidos até o momento indicam que essa abordagem oferece uma opção promissora, segura e pode trazer melhoras clínicas importantes para pacientes que sofrem de anemia falciforme.

Referências:

Sharma A, et al. CRISPR-Cas9 Editing of the HBG1 and HBG2 Promoters to Treat Sickle Cell Disease. N Engl J Med, 2023; 389: 820-32.

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